Se a inflação fosse uma novela, não faltariam personagens no enredo. Os núcleos de produtos e serviços analisados formam uma teia complexa, uma trama na qual grupos isolados, como o de produtores rurais, têm pouco ou nenhum poder de influência. Nessa história, quebras de safra, desequilíbrio na oferta e demanda, altas taxas de câmbio e elevados custos de produção estão entre os maiores vilões. E o principal autor da “novela”, com poder de transformar os rumos da história, é o governo federal, que tem decepcionado nas ações. Nos últimos meses, os episódios têm sido mal-recebidos pela população brasileira e também pelo setor produtivo.
Para que todos estejam no mesmo capítulo, é preciso lembrar que a principal ferramenta para medir a inflação é o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), divulgado mensalmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No acumulado de fevereiro de 2024 a janeiro de 2025, o IPCA registrou aumento de 4,56% nos preços, puxados principalmente por alimentação e bebidas (7,25%), alimentação fora do domicílio (6,74%) e educação (6,63%). O grupo dos alimentos, nesse momento, chama a atenção, levando a uma visão equivocada de que os produtores rurais seriam os culpados pela inflação.
Em pronunciamento no dia 14 de março, em mais uma tentativa de colocar nos produtores rurais a responsabilidade pela alta dos preços, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ironizou: “Nós queremos encontrar quem é o pilantra que aumentou o ovo tanto”. A declaração vem na mesma medida do governo federal de desonerar a importação de alimentos para supostamente conter a subida nos preços, uma estratégia classificada como ineficaz pelo Sistema FAEP e outras entidades do agronegócio.
“O produtor rural não é o culpado pela inflação”, rebate Ágide Eduardo Meneguette, presidente interino do Sistema FAEP. “Ao contrário. No campo, sem descanso, os agricultores e pecuaristas trabalham para produzir alimentos, gerar renda e emprego e segurar a balança comercial do país. Os altos preços dos alimentos são consequência de outros fatores, como custos de produção elevados e o chamado ‘Custo Brasil’”, completa.

Historicamente, o produtor rural é tomador de preços, seja na hora de comprar insumos ou de vender sua produção. “Os preços são colocados de acordo com a conjuntura, que envolve tanto fatores da economia nacional quanto aspectos internacionais. A variação, portanto, depende mais de questões de mercado do que a vontade de quem está produzindo”, detalha Anderson Sartorelli, técnico do Departamento Técnico e Econômico (DTE) do Sistema FAEP.
Outro ponto importante relacionado aos preços dos alimentos é a sazonalidade, já que existem períodos de oferta concentrada, com maior disponibilidade após a colheita ou abate. “Esse comportamento da maior oferta de produtos em períodos definidos, chamado popularmente ‘da estação’, causa um comportamento sazonal dos preços dos produtos agropecuários, regidos pelo balanço de oferta e demanda. Ou seja, quanto mais se produz de algo, menor será seu preço e vice-versa”, explica Ana Paula Kowalski, técnica do DTE do Sistema FAEP.
Ações articuladas
A economia moderna e globalizada se caracteriza por uma alta complexidade. A interconexão entre as cotações das commodities depende de acontecimentos diários espalhados pelo mundo. Por isso, a missão de combater a inflação exige políticas articuladas em diferentes frentes, conforme apontam os especialistas da área econômica ouvidos pela reportagem da revista Boletim Informativo.
“Os alimentos têm um impacto significativo na inflação no Brasil, embora não sejam os únicos responsáveis por pressionar os preços. Com a matriz logística nacional fortemente dependente do transporte rodoviário, aumentos nos preços dos combustíveis elevam os custos de distribuição e, consequentemente, os preços finais dos alimentos. Além disso, o câmbio afeta a atratividade da exportação em dólares, o que pode reduzir o fornecimento de alimentos no mercado interno e pressionar os preços”, analisa Felipe Jordy, coordenador de inteligência e estratégia da Biond Agro.
Leonel Mattos, analista de inteligência de mercado da StoneX, concorda que a inflação brasileira tem múltiplas origens e acrescenta as condições climáticas adversas e a volatilidade dos preços in natura na conta da instabilidade. “Um setor impacta direta e indiretamente outros setores. A economia moderna é muito complexa e interdependente. É difícil termos uma pressão isolada”, complementa.
Edson Kawabata, sócio-diretor de novos negócios da Peers Consulting + Technology, acrescenta o câmbio como um fator determinante a ser observado na hora de analisar a inflação.
“A variação da taxa cambial impacta a inflação por via de dois mecanismos principais: a precificação de importados e o equilíbrio entre importações e exportações. O dólar mais alto estimula exportações e desincentiva importações, e vice-versa na baixa”, esmiuça o especialista.

Afinal, quem são os vilões?
Para os especialistas, o governo, com a execução de políticas públicas, tem um papel determinante na dinâmica inflacionária. Jordy enfatiza o papel do Estado em promover projetos de infraestrutura, logística eficiente e estabilidade fiscal, que seriam respostas com potencial de conter os ânimos inflacionários. “O governo tem instrumentos para atuar sobre a demanda e a oferta. A política energética, por exemplo, é outro fator que pode influenciar a inflação, assim como ações pontuais, como a formação de estoques reguladores agrícolas”, sugere.
O fantasma da hiperinflação vivida entre o fim dos anos 1980 e início dos anos 1990 também assombra o país e entra no debate das medidas a serem tomadas em contextos de pressão sobre os preços. A inflação brasileira, para os economistas, não é uma questão isolada no mundo, mas tem suas peculiaridades. A dependência de commodities, a volatilidade do câmbio e o histórico de instabilidade econômica tornam o país mais exposto a choques externos.
Para Kawabata, o fato de o país ter convivido com essa inflação elevada durante anos até o Plano Real estimula uma “cultura inflacionária”, que leva os agentes econômicos a se anteciparem a qualquer sinal de alta de custos para elevarem preços, em caráter preventivo. “Outro fator é a indexação de parte dos preços da economia, como aluguéis, mensalidade escolar, planos de saúde e até salários, reforçando uma certa inércia inflacionária, que vai se propagando a cada ciclo de reajustes”, exemplifica.

“Entre os países emergentes, o Brasil tem uma certa vantagem comparativa, pois é um mercado grande, menos dependente de importações do que muitos vizinhos. Mas a flutuação das variáveis macroeconômicas continua sendo um desafio”, aponta Mattos.
Em resumo, se a inflação no Brasil fosse uma novela, o enredo seria um quebra-cabeça de múltiplas peças que precisam se encaixar: câmbio, juros, custos, demanda, clima, políticas públicas e até mesmo a cultura nacional influenciada pelo passado das remarcações de preço diárias dos supermercados. Combatê-la exige ações coordenada, diagnósticos precisos e, sobretudo, responsabilidade fiscal. Não há mágica, mas há caminhos.
“O mercado vê com preocupação porque não há uma sinalização de cuidado por parte do governo com as contas públicas e a estabilidade no médio prazo. Isso gera incertezas, preocupações com relação aos próximos passos e a moeda fica a mercê do que acontece no mercado externo. Uma maior preocupação com a questão fiscal levaria agentes a enxergar estabilidade, o que atrai investimentos e, consequentemente, produção. O caos nunca é o melhor caminho. O cenário de estabilidade é o principal ponto a ser buscado”, aponta Anderson Sartorelli, do DTE do Sistema FAEP.

E a taxa Selic?
No debate sobre o controle da inflação, a elevação da taxa básica de juros (Selic) costuma surgir como protagonista no noticiário econômico. Quem determina essa taxa é o Comitê de Política Monetária (Copom), vinculado ao Banco Central, órgão autônomo em relação ao governo federal. O valor mais baixo experimentado nos últimos 12 meses ocorreu em maio de 2024, com 10,5%. Desde então a taxa tem subido sistematicamente até atingir 14,25% em março deste ano, tornando o crédito mais caro.
“A taxa de juros desempenha um papel fundamental no controle da inflação ao desestimular o consumo e incentivar a poupança. Quando a taxa é elevada, cai a capacidade de endividamento de indivíduos e empresas, o que contribui para limitar o avanço dos preços. No entanto, subir os juros nem sempre é a solução, pois seus efeitos podem desacelerar o crescimento econômico e aumentar o custo do crédito, o que também afeta negativamente o poder aquisitivo da população”, pondera Felipe Jordy, da Biond Agro.
Neste cenário, Leonel Mattos, da StoneX, detalha os dois tipos de inflação: a de custo, que nasce de problemas na oferta (como uma safra ruim), e a de demanda, causada pelo consumo aquecido. “Os juros são mais eficazes no segundo caso. Quando o problema é oferta, como o encarecimento de fertilizantes, os juros têm pouco efeito”, afirma. “Ainda assim, o crédito mais caro tem um papel indireto importante, já que envolve potencial de atrair capital estrangeiro para investimentos, o que potencialmente fortalece o real”, completa.

Governo insiste na importação de alimentos
Diante da alta dos preços, o governo tem adotado como alternativa a redução das taxas de importação para alimentos e itens da cesta básica para combater a inflação. Desde então, o Sistema FAEP tem se posicionado contra a proposta de zerar as tarifas para compra de alimentos estrangeiros, já que além de não resolver a questão, ainda cria outras dificuldades para a economia do país.
“O Brasil não pode insistir em soluções ultrapassadas para problemas crônicos. Transferir o ônus da inflação para o setor produtivo é um equívoco que compromete um dos pilares da economia nacional. Enfraquecer o agronegócio com políticas equivocadas significa comprometer o futuro do país”, sinaliza Ágide Eduardo Meneguette, presidente interino do Sistema FAEP.
Em fevereiro deste ano, o Instituto Pensar Agropecuária (IPA), do qual o Sistema FAEP integra o Conselho Executivo, enviou ao governo federal um documento com sugestões de curto, médio e longo prazos para combater a inflação dos alimentos sem prejudicar o setor produtivo. No texto, o IPA também condena os subsídios indiscriminados às importações, medidas que podem desestimular a produção agropecuária, reduzir investimentos no setor e, consequentemente, elevar os preços ao consumidor.
Para os especialistas, a medida de desonerar importações pode até funcionar no curto prazo ao aumentar a oferta interna, mas alertam para desdobramentos futuros. “É preciso evitar que o país se torne excessivamente dependente do mercado externo”, aponta Felipe Jordy, coordenador de inteligência e estratégia da Biond Agro. “Pode ajudar, mas não resolve sozinho. Se o Brasil não é importador tradicional de certos itens, há barreiras logísticas e comerciais que dificultam a substituição imediata do produto nacional pelo estrangeiro”, alerta Leonel Mattos, analista de inteligência de mercado da StoneX.
Edson Kawabata, da Peers Consulting + Technology, vê essa medida como uma alavanca acionável pelo governo para tentar mitigar o problema, mas que não é efetiva sozinha. “É necessária uma análise estratégica mais ampla no âmbito da reforma tributária (entre outras medidas estruturais), para uma melhor equalização dos tributos aplicáveis nas cadeias de valor de produtos, para reduzir assimetrias e estimular a competitividade dos setores”, alerta.
Comentar