Apesar da importância econômica da cana-de-açúcar para países como o Brasil e da série de investimentos e esforços feitos desde a década de 1970 no país para realizar melhoramento genético da planta, a compreensão do genoma dessa cultura agrícola ainda é limitada, afirmam especialistas na área.
Isso porque, diferentemente de organismos como os humanos –que têm duas cópias de cada um de seus 23 pares de cromossomo, sendo uma recebida do pai e a outra da mãe, e duas variantes de cada gene herdado dos genitores –, a cana-de-açúcar possui um arranjo genético muito mais complexo, com várias cópias de cada cromossomo e numerosas variantes de cada gene.
Por essa razão, é difícil entender como características genéticas são transferidas e como funcionam os múltiplos variantes de cada gene na planta – o que dificulta o melhoramento e a obtenção de variedades mais produtivas de cana-de-açúcar.
Um grupo de pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus de Araras, e do Instituto Agronômico (IAC) de Campinas, em colaboração com colegas da Austrália e dos Estados Unidos, desenvolveu uma metodologia de análise do genoma de plantas poliploides (com mais de dois conjuntos de cromossomos do mesmo tipo e origem) que poderá auxiliar a desvendar a complexa estrutura do genoma da cana.
Resultado de um Projeto Temático, realizado no âmbito do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (BIOEN), a nova metodologia foi utilizada em um estudo de análise do genoma da planta. Os resultados foram publicados em dezembro na Scientific Reports – revista de acesso aberto editada pelo grupo Nature.
“A nova metodologia representa um divisor de águas na história do melhoramento genético e da genômica da cana-de-açúcar”, disse Anete Pereira de Souza, professora do Instituto de Biologia e pesquisadora do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMEG) da Unicamp e uma das autoras do estudo, à Agência FAPESP.
“É como se antes, com as ferramentas de que dispúnhamos, pudéssemos olhar o genoma da cana-de-açúcar com uma lente de aumento de 10 vezes, e agora, com a metodologia que desenvolvemos, conseguimos analisá-lo com um microscópio eletrônico com aumento de 100 milhões de vezes, com resolução muito maior”, comparou.
A nova metodologia consiste na combinação do uso de marcadores moleculares de polimorfismo de base única (SNPs, na sigla em inglês) com uma análise genético-estatística inovadora para determinar a estrutura genética e genômica de poliploides complexos, como a cana-de-açúcar.
Já utilizados no estudo de diversas doenças humanas, como o câncer, os SNPs possibilitam interpretar a variação de cada gene de espécies de plantas poliploides como dois únicos alelos (variantes de um mesmo gene) para cada SNP, explicou a pesquisadora.
Por meio de um espectrômetro de massas, adquirido por intermédio do projeto, e do método de análise genético-estatístico que desenvolveram, baseado em algoritmos e softwares criados especificamente para essa finalidade, os pesquisadores identificaram essas variantes de genes da cana-de-açúcar e estimaram em quais dosagens estão presentes na planta.
Os resultados da análise genética e genômica da planta demonstraram que a cana-de-açúcar tem um nível de ploidia (cromossomos repetidos) e de variantes de genes elevado. O número de cópias de cada gene da planta, por exemplo, pode variar de 6 a 14, apontou o estudo.
“Esta poliploidia da cana e de outras plantas é resultado de sua evolução e domesticação ao longo de milhares de anos, que as tornaram mais produtivas e adaptadas a diferentes condições de plantio”, explicou Souza.
Possíveis contribuições
Na avaliação da pesquisadora, o novo método deve contribuir para realizar de forma confiável a análise genética de plantas poliploides e construir mapas genéticos moleculares que possibilitariam identificar a localização exata de genes de interesse nos cromossomos dessas culturas agrícola que representam, aproximadamente, 70% das espécies de plantas existentes no planeta.
Embora tenha ocorrido nos últimos anos avanços no desenvolvimento de instrumentação e de técnicas de manipulação bioquímica que permitiram sequenciar e analisar em tempo recorde o genoma de diversos organismos, eles ainda não se traduziram em aumento significativo do conhecimento e da eficiência do melhoramento genético de plantas poliploides complexas como a cana-de-açúcar.
Uma das razões para a existência desse obstáculo é que ainda não foi possível compreender perfeitamente o funcionamento das diferentes variantes dos genes presentes nessas espécies de planta, apontou Souza.
“Um dos desafios enfrentados para realizar melhoramento genético da cana-de-açúcar, por exemplo, é identificar qual variante de gene é responsável por uma determinada característica de interesse agrícola – como a resistência a pragas ou maior produção de açúcar –, e em que dosagem deve estar presente no genoma da planta”, explicou.
“Por meio dessa nova metodologia será possível identificar regiões de interesse no genoma da planta e cloná-las por intermédio de uma biblioteca com mais de 400 mil clones de variantes de genes de cana-de-açúcar que construímos paralelamente ao desenvolvimento do estudo, e que poderão ser utilizados para transformação genética caso haja interesse”, disse Souza.
O método também deverá contribuir para a montagem de sequências do genoma de referência da cana-de-açúcar e de outras culturas agrícolas poliploides de interesse econômico, como algodão, trigo e morango.
Em razão da insuficiente compreensão dos genes e de suas funções dessas culturas agrícolas poliploides, ainda não foi possível conseguir ordenar e identificar corretamente suas sequências e realizar a leitura completa de seus genomas, apontam os pesquisadores.
“O estudo indicou, pela primeira vez, que é possível realizar a genotipagem [leitura do genoma] de espécies de plantas poliploides complexas, como é o caso da cana-de-açúcar”, destacou Antonio Augusto Franco Garcia, pesquisador do Departamento de Genética da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP) e um dos autores da pesquisa.
Próximas etapas
Além da cana-de-açúcar, o método começou a ser utilizado agora para o estudo do genoma de espécies de plantas forrageiras de grande importância para a pecuária brasileira, como a braquiária e o capim colonião.
A exemplo da cana, essas espécies de plantas, utilizadas para alimentação de gado, também não dispunham de uma metodologia e ferramentas adequadas e eficientes para estudar seu genoma como as já existentes para espécies de plantas diploides (com duas cópias de cromossomo), como feijão, arroz, soja e laranja, e que permitiram melhorar geneticamente variedades dessas culturas, tornando-as mais adaptadas e produtivas.
“Os programas de melhoramento genético de milho, soja e arroz, por exemplo, utilizam rotineiramente marcadores moleculares, que ainda não são usados na cana-de-açúcar em função de sua complexidade genética”, disse Garcia.
“O trabalho que realizamos abre a possibilidade de, em um futuro próximo, também incorporar de forma eficiente informações provenientes de marcadores moleculares nos programas de melhoramento genético de cana existentes no Brasil”, avaliou.
Atualmente, os pesquisadores participantes do projeto têm se dedicado à construção de um mapa genético da cana-de-açúcar, que deverá ser concluído em 2014. O próximo passo é identificar no genoma da planta características de interesse na planta utilizando a nova metodologia.
“A ideia é conectar as informações genômicas identificadas no mapa genético da cana-de-açúcar que está em fase de desenvolvimento com as características de interesse para programas de melhoramento da planta”, explicou Marcelo Mollinari, que realiza pós-doutorado no Departamento de Genética da Esalq sob orientação de Garcia com Bolsa da FAPESP.
Mollinari seguirá em fevereiro para a Universidade de Purdue, nos Estados Unidos, onde permanecerá um ano com uma Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior (BEPE), também concedida pela FAPESP, para concluir essa etapa da pesquisa.
“Queremos saber por intermédio desse estudo quais posições do genoma da cana estão associados com a variação de teor de fibra da planta, por exemplo, que é uma característica importante para produção de etanol de segunda geração”, disse Mollinari.
Fonte: Fapesp
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