Felippe Aníbal, com fotos de Fernando Santos
À primeira vista, já se tem a impressão de que se está diante de animais extraordinários. Apartadas do rebanho, as quatro vacas da raça holandesa do criador Albertus Frederick Wolters impressionam pelo porte e conformação. Mas são os dados oficiais do controle leiteiro que atestam que, de fato, se tratam de recordistas: cada uma delas já ultrapassou a marca de 100 mil litros (ou quilos) de leite produzidos ao longo da vida. Este raro patamar de produção é o resultado acabado de décadas de trabalho, assentado em três fatores principais: melhoramento genético, manejo e bem-estar.
No Brasil, os animais que batem os 100 mil litros produzidos passam a pertencer a uma elite que tem até nome: Vacas Vitalícias. E é no Paraná que essa categoria está maciçamente concentrada. Entre 2008 e 2018, a Associação Paranaense de Criadores de Bovinos da Raça Holandesa (APCBRH) certificou 431 fêmeas que chegaram a esse nível produtivo. Em âmbito nacional, os dados mais recentes apontam que 126 Vacas Vitalícias foram registradas ao longo de 2017 no país, das quais 122 eram do Paraná, três de São Paulo e uma de Minas Gerais.
Um dos primeiros pecuaristas do país a ter uma produtora que passou da casa dos 100 mil litros, Wolters também é o recordista em número de Vacas Vitalícias: já foram 79 cabeças desta categoria, certificadas na fazenda dele, em Castro, nos Campos Gerais. Em sua propriedade, o pecuarista mantém mais de mil animais em lactação, além de outras mil cabeças, entre bezerros e gados jovens. Todo rebanho assentado em genética de ponta.
E não é de agora. Desde que o pai dele chegou ao Brasil em 1952, trazendo as dez vacas com as quais deu início ao rebanho leiteiro, a linhagem tem peso determinante. Hoje, olhando nos registros, se percebe que os sobrenomes das Vacas Vitalícias e dos pais se repetem, a ponto de se tornarem quase uma marca. Nomes como Maaike, Stomartic, Ilka, Froukje e Sjoukje são recorrentes. No início de março deste ano, por exemplo, a vaca AFW Marconi Sjouke 1014 (repare no sobrenome) deixou o rebanho, tendo produzido incríveis 163 mil litros ao longo da vida.
“As Vacas Vitalícias são uma somatória de fatores e a genética tem muito peso. As linhagens por parte de mãe e de touros são muito importantes. A Sjouke, mesmo, é um nome holandês, de uma das vacas que veio da Holanda, quando meu pai começou”, diz Wolters.
Esse melhoramento genético não ocorre do dia para a noite, mas, sim, é resultado de décadas de trabalho, de geração para geração. Em regra, os criadores apostam em seleção gênica, a partir de touros e fêmeas provados para produção leiteira e longevidade. Ou seja, esses animais carregam consigo o DNA da elite. “Tem que ter genética. Não adianta investir em um charolês, que não vai dar nada”, brinca outro criador, Jan Ubel van der Vinne, de Carambeí, também nos Campos Gerais.
A prova está no fato de o Paraná ser o segundo Estado que mais aplica inseminação artificial na pecuária leiteira, com quase 13% dos procedimentos realizados em todo o país, conforme dados da Associação Brasileira de Inseminação Artificial (Asbia). O médico veterinário do Sistema FAEP/SENAR-PR Alexandre Lobo Blanco destaca a importância dos estudos sobre a correlação de características de produção e longevidade no rebanho e o peso determinante que o fator genético tem para a atividade.
“Essas características de produção e longevidade foram escolhidas pelo grupo técnico da Associação [APCBRH] para serem valorizadas e desenvolvidas, com registro em pedigrees”, diz. “[As Vacas Vitalícias] são animais que tendem a ser expoentes da raça e que agregam valor ao criador como patrimônio genético, principalmente, a partir das filhas que vão gerar”, destaca.
Bem-estar
Mas a seleção genética, por si só, não garante eficiência produtiva. Por isso, é preciso apostar em outros cuidados dentro da porteira, principalmente no que se refere ao bem-estar animal. Em linhas gerais, as vacas precisam de conforto, sombra e água fresca, para produzir em larga escala. No confinamento, elementos como controle de temperatura dos galpões – feito a partir de grandes sistemas de ventilação – são obrigatórios. Além disso, deve haver fácil acesso a água e comida, para que os animais permaneçam em condições ideais.
Neste aspecto, o criador Hans Jan Groenwold, também de Castro, destaca a importância das camas de areia, onde os animais permanecem boa parte do dia. O pecuarista – que já teve 59 Vacas Vitalícias certificadas – conta que essas estruturas são feitas sob medida em sua fazenda, de acordo com o porte e as necessidades dos animais. Hoje, três Vacas Vitalícias estão em atividade no plantel e, juntas, já produziram mais de 330 mil litros de leite. Os cuidados, no entanto, não são privilégio só delas, mas se estendem por todo o rebanho, que contabiliza quase 900 cabeças em lactação, além de outros 1,2 mil animais.
“Um animal passa boa parte do tempo deitado, ruminando. Então, a vaca tem que ter um lugar bom, confortável e que seja aconchegante para deitar”, aponta Groenwold. “A gente precisa dar condições, o maior conforto possível, para que elas mantenham essa produção”, completa o criador, que também é presidente da APCBRH.
Manejo
Além da genética e do bem-estar animal, questões de manejo fecham o tripé que sustenta a produção das Vacas Vitalícias. Uma das principais práticas é redobrar a atenção na higienização dos úberes antes e depois de cada ordenha. Isso porque animais com esse nível de produção estão mais sujeitos a doenças, como mastite.
Outro ponto considerado crucial pelos criadores é a nutrição animal. Pecuarista que já teve 11 Vacas Vitalícias em seu rebanho, Vinne investe em ração balanceada e de qualidade. É um item sagrado. Pelas contas dele, cada R$ 0,90 investidos em alimentação dos animais geram dois litros de leite. Por isso, o pecuarista considera que comete um erro fatal quem reduz a quantidade de ração em períodos em que o mercado entra em crise.
“Muitas vezes, o produtor quer economizar e corta a alimentação. Consequentemente, cai a produção desse animal. Ele vai perder em produtividade e, consequentemente, dinheiro. Para recuperar o padrão de produção do animal, depois, não é fácil”, resume. “Todo o leite que sai, entrou pela boca do animal, em forma de ração”, diz.
“O animal precisa ter ração boa, concentrada e em fácil acesso. Os meios têm que ser os melhores possíveis para conseguirem manter a produção. A nutrição animal é importantíssima pra se chegar a um animal desse porte”, acrescenta Groenwold.
Desempenho
Em síntese, por manterem produção regular por um longo período, as Vacas Vitalícias permanecem por mais tempo no rebanho. Logo, são mais longevas. Dados oficiais do sistema de controle leiteiro da APCBRH apontam que essas fêmeas têm pelo menos o dobro de lactações que a média ao longo da sua vida produtiva – a média estadual é de quatro lactações. Mencionada nesta reportagem, a vaca AFW Marconi Sjouke 1014, por exemplo, teve 11 lactações.
“Nos animais do controle leiteiro, nós vemos em torno de quatro lactações. Ao fim disso, eles deixam o rebanho. Nesses animais que passam dos 100 mil quilos de leite produzidos, chega a oito, dez e até 12 lactações, ou seja, até três vezes mais. Seguramente, são animais diferenciados”, aponta o gerente de controle leiteiro da APCBRH, José Augusto Horst.
Além disso, cada período de lactação das Vacas Vitalícias é estendido. Ou seja, elas são capazes de manter a produção em um nível regular por muito mais tempo. “Normalmente, a lactação de uma vaca dura dez meses, em torno de 305 dias. Agora, as Vacas Vitalícias, depois que parem, dão leite por um ano e meio, um ano e sete meses. É uma produção incrível”, diz o superintendente da APCBRH, Altair Valloto.
Por tudo isso, a produção acumulada de uma Vaca Vitalícia chega a ser dez vezes maior em relação à média de uma vaca comum, que gira em torno de 14 mil litros. Já um animal de ponta, acompanhado por controle leiteiro oficial no Paraná, produz uma média de 25 mil litros ao longo da vida, um quarto do volume de uma Vitalícia.
Bacia leiteira
Pontualmente, criadores de cidades como Arapoti e Palmeira, nos Campos Gerais, conseguem chegar a ter uma Vaca Vitalícia em seu rebanho. Mas a ocorrência desses animais se concentra de forma aguda em Castro e Carambeí, no Centro-Ocidental do Estado. Não é por acaso. Principal bacia leiteira do país, a microrregião é um importante polo produtor do Brasil, com níveis que se equiparam e/ou superam padrões internacionais. Castro, por exemplo, é reconhecida oficialmente – por lei federal – como “Capital Nacional do Leite”, com um volume de produção de 255 milhões de litros por ano (5,3% do total estadual) e produtividade média de 7,4 mil litros por cabeça. “Temos um nicho de criadores nessas regiões que realmente fazem um trabalho muito intenso em termos de seleção genética, bem-estar animal e nutrição. Isso, há muito tempo. Há décadas vem se trabalhando nesses aspectos”, destaca Altair Valloto, da APCBRH.
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