O padrão mediano das nossas farinhas é uma questão que vem desde pelo menos a ditadura, quando o governo militar tomou o controle da produção de trigo e farinha, inclusive com tabelamento de preços.
Uma rodada por alguns empórios e supermercados da cidade rende dezenas de tipos de farinha de trigo, entre marcas nacionais e importadas. Mas para que serve tanta farinha? Não seria tudo a mesma coisa? Não é bem assim.
Esse leque surpreendente – cujos quilos variam de R$ 3 a R$ 23 – inclui o que podemos chamar de trigo comum (da espécie Triticum aestivum) e trigo duro (Triticum durum), das mais refinadas até as integrais. Parece pouca a possibilidade de combinação, mas, dentro do universo de cada espécie (e existem ainda outras espécies), inúmeras variedades da planta em várias partes do globo (só no Brasil são mais de 250 cultivares de T. aestivum registradas) geram diferentes farinhas unindo três principais fatores: o DNA do trigo, o terroir (clima e solo onde foi plantado) e o tipo de refino a que foi submetido.
Basicamente, a T. durum gera uma farinha forte própria para macarrão. Mas é com a T. aestivum que as possibilidades são mais diversas – e entre elas, as refinadas, já que as cascas das integrais costumam “atrapalhar” o trabalho do glúten, quando este é necessário na receita.
As possibilidades começam pela força da farinha (que é medida em W e tem origem no DNA do grão; vai em geral de 50 W a 350 W, sendo o número maior o da farinha mais forte). É o quanto a farinha tem de glúten para aguentar ser esticada, tanto pela fermentação (cujas bolhas de ar pressionam as teias de glúten) quanto pelo estiramento. Então, pede-se farinha forte (em torno de 300 W) para pizzas e pães de longa fermentação, média (200 W) para pães mais rápidos, e fraca (150 W) para bolos e massas podres.
Depois, tem o refino da T. aestivum, que por lei no Brasil gera três tipos de farinha: 1 (mais fina e pura), 2 e integral. Na Itália, são duas categorias a mais: 00 (mais fina e pura), 0, 1, 2 e integral. Por aqui, o consumo ditou as regras: com cada vez mais gente fazendo pão de fermentação natural ou pizza no forno a lenha em casa, as italianas mais abundantes são as do tipo 00 fortes: alvíssimas, puras e que aguentam fermentação e estiramento. Por outro lado, apesar de serem bem alvas e finas, como quer a confeitaria, a maioria das vendidas no Brasil não é boa para doces porque tem muito glúten (e, sim, é possível uma mesma marca fazer farinha 00 forte, 00 média e 00 fraca).
Não acaba aí: além do tipo de refino e da força do glúten, tem o teor de cinzas (“sujidades”), o poder de extensibilidade, o teor de proteína, umidade… Com esse tortuoso caminho, os consumidores precisam contar com a indicação no rótulo sobre para que serve cada farinha, prática que não é adotada por todas as marcas.
A indústria do trigo no Brasil
O padrão mediano das nossas farinhas é uma questão que vem desde pelo menos a ditadura, quando o governo militar tomou o controle da produção de trigo e farinha, inclusive com tabelamento de preços. Uma lei de 1967 transformou o grão em monopólio estatal e, até que ela fosse derrubada em 1990, o domínio federal visava quantidade, não qualidade, fazendo a indústria estagnar no campo tecnológico.
“Começamos a discutir o trigo em 1990 e, de lá para cá, cresceram os multiplicadores para melhorar a qualidade. Mas nosso mercado não está maduro. Não dá para querer só a farinha na prateleira se não tiver um trabalho desde o produtor e o moinho”, diz Marcelo Vosnika, do moinho S.A. Moageira e Agrícola, presidente do conselho deliberativo da Associação Brasileira da Indústria do Trigo (Abitrigo).
Segundo Vosnika, a indústria está atenta às mudanças de hábito de consumo, mas a demanda por farinhas fortes, como as italianas, ainda é nicho pequeno. Assim, a indústria não é forçada a separar melhor grãos e refinos. “O Brasil tem condições de fazer farinhas fortes, mas nem todos os armazenamentos são por variedade e qualidade. Em Manitoba, no Canadá, o trigo é muito bom, mas lá só se faz trigo. A cadeia inteira está focada no grão. Aqui tem a soja.”
Farinha não faz milagre; tem de ter técnica
A vida inteira o brasileiro levou farinha de trigo para a cozinha majoritariamente para fazer bolos e massas podres para doces e salgados – por que precisaria de farinha forte para pão de fermentação natural, moda recente? Esse é um motivo que explica porque a nossa demanda não fez a oferta de farinhas ser como na Itália – questão cultural.
“A Itália tem esses tipos porque tem muitas excelências que usam farinhas puras e fortes: pizza, panetone e macarrão. Na França, você também não vai achar farinha para pizza como na Itália, porque lá não tem a cultura da pizza”, conta o chef Sauro Scarabotta, que usa farinha italiana em seus cursos e receitas em São Paulo.
As nacionais encontradas nos supermercados têm força de média a fraca – mas isso não vem especificado por lei no rótulo e, se o profissional não pedir um laudo ou perguntar à empresa, vai ter de fazer testes até acertar a receita. Por isso, dizem especialistas, é importante que as marcas apontem para que serve cada farinha, como as italianas: “pães”, “pizzas”.
O custo de produção afeta a escolha de muitos profissionais. “Se vou fazer pão no fim de semana, um quilo de farinha importada a R$ 10 está bem. Mas, em escala profissional, tem de se pensar no custo”, diz Papoula Ribeiro, da Padoca do Maní.O padeiro Rogério Shimura, presidente do Sindicato da Indústria de Panificação e Confeitaria de São Paulo (Sindipan), também justifica a escolha por marcas nacionais que usa na sua escola Levain, mas repassa parte do peso sobre a qualidade da farinha para a experiência do profissional. “A melhor farinha que existe é a que cabe no seu bolso, mas a técnica ainda é mais importante do que a farinha.” Isso ainda somado à temperatura do ambiente, à regulação do forno, se o dia está seco…
Marcos Carnero, da Miolo Padaria Artesanal, que também usa farinha nacional, dá a dica de como “fortalece” sua massa para pães de fermentação natural. “Faço massa adormecida
com 1g de fermento biológico seco para cada quilo de farinha. Depois, uso 20% dessa massa para o total de farinha de cada receita. Ajuda a segurar o pão.”
Para Sauro, não adianta o consumidor ficar pulando tanto de farinha em farinha. “Brinque de mudar a farinha depois que você domina a receita. Senão, nunca vai saber se o problema é a sua falta de experiência ou a qualidade da farinha.”
CADA UM COM A SUA FARINHA
1. Pizza
Não precisa crescer como os pães (só a borda da pizza napolitana), mas precisa ser esticada. Isso pede glúten, ou seja, farinha forte (de 280 a 320 W), que aguenta hidratação alta, com mais de 65% do peso da massa em água. Farinhas com W por volta de 350 são em geral usadas para turbinar uma farinha fraca. As fortes têm em torno de 12% de proteína do glúten, que é um dos indicativos da força (mas não é determinante para apontar a medida).
2. Pão
Quanto maiores a fermentação e a hidratação do pão, mais forte (280-320 W) deve ser a farinha e alto o teor de proteína. É a teia de glúten que vai sustentar o peso da massa e segurar as bolhas expelidas na fermentação, quando o fermento come os açúcares do amido e gera gás carbônico. Pães de fermentação rápida ou mais baixos, como a focaccia, pedem farinha de força média (180-260 W).
3. Bolo
O bolo precisa crescer, mas, como a teia de glúten “gelifica” ao ser assada, o bolo vai ter aspecto de borracha se levar farinha forte. O ideal, também na confeitaria, é usar farinha fraca (até 170 W), alva, fina e pura (tipo 1 no Brasil; 00 na Itália). Quanto mais fina, mais leveza o bolo terá. A dica do confeiteiro Caio Corrêa ao usar marca nacional (em geral de força média) é substituir parte da farinha da receita por amido de milho, mandioca ou batata, que não possui glúten e vai dar leveza à massa.
4. Massa podre
Tanto em doces ou salgados, como quiches, empadas e tortas, a massa podre não pede crescimento e, para ficar com o típico aspecto esfarelento, não pode ter liga. Então, a farinha deve ser fraca (até 170 W, com teor de proteína em torno de 8%). As integrais podem ir bem aqui, já que agregam aroma e sabor e não atrapalham a ação do glúten.
5. Macarrão
Aqui, é a única categoria em geral feita com a espécie Triticum durum (“grano duro”), não o Triticum aestivum (“grano tenero”). O “grano duro” pode ter força de glúten similar à do trigo comum (“tenero”), mas ele traz em seu DNA uma dureza peculiar, que faz com que a massa não fique engomada (pastosa) depois de cozida. Já os termos sêmola e semolina são indicativos do grau de moagem, sendo mais granulosas as sêmolas e semolinas do que uma farinha refinada do mesmo “grano duro”.
Fonte: Gazeta do Povo
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