O dedo sobre o leitor de impressão digital ativa uma porta de correr gigantesca que se desloca para a direita. Está frio lá dentro, 20 graus negativos, e permanecerá assim. Todos os aparelhos de refrigeração têm seus reservas, ligados a qualquer sinal de defeito do titular. Mesmo que falte energia, dois geradores de 5.000 litros de diesel mantêm por dias o funcionamento do sistema. A estrutura parece um imenso e esquisito cofre. Bem, ela efetivamente guarda um tesouro: a biodiversidade do Brasil.
O novo Banco Genético da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) entrará em funcionamento pleno em seis meses. Passa por seus últimos ajustes, antes de receber 125 mil amostras, como sementes, sêmen, tecidos biológicos e micro-organismos. O prédio custou R$ 13 milhões. Será o terceiro maior do mundo em capacidade, o segundo maior a pertencer a um único país. Poderá guardar 1 milhão de amostras. Seu objetivo é impedir que plantas, animais e micro-organismos desapareçam. “De estruturas como essa depende a sobrevivência da humanidade”, diz Eliana Fontes, diretora do Departamento de Patrimônio Genético do Ministério do Meio Ambiente. Parece exagero, mas os bancos são a última barreira diante de uma catástrofe no cultivo de alimentos.
Para entender melhor sua função, é preciso voltar à década de 1970, quando ganhava força a Revolução Verde. Na época, novos insumos, práticas e sementes aumentaram muito a produtividade. Mas isso fez com que a maioria dos agricultores optasse por um número restrito de cultivos, e, dentro desses cultivos, optou-se por um número restrito de variedades – as mais produtivas e lucrativas. Essa opção teve um custo ambiental. A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) estima que a humanidade tenha perdido 75% da biodiversidade de plantas que já cultivou algum dia. “Os Estados Unidos tinham, há um século, 5 mil variedades de maçã. É difícil encontrar hoje, no varejo, uma centena”, diz o italiano Luigi Guarino, cientista do fundo Global Crop Diversity.
Trata-se de um problema ecológico e também de segurança alimentar. Variedades de plantas e animais deixados de lado tinham uma carga genética moldada para se adaptar a diferentes condições ambientais. Quanto mais variedade uma espécie tem, mais provável que pelo menos alguma sobreviva a eventos extremos, como alterações no clima ou pragas. Uma espécie com pouca diversidade é mais facilmente dizimada. “Hoje, temos praticamente monoculturas no Brasil, não há variação. Se vem uma praga e não temos uma reserva genética, isso ameaça toda a produção”, diz Filipe Teixeira, gerente jurídico na empresa de melhoramento genético Syngenta.
É aí que entram os bancos genéticos. Ao preservar plantas e animais que deixaram de ser usados comercialmente, eles guardam uma coleção de genomas em que podemos encontrar variedades antigas resistentes a novas pragas. Se um fungo atingir plantações de milho, recorre-se ao banco para achar uma semente tolerante ao agressor. Essa semente é cruzada com variedades comerciais, para que gere uma nova variedade, ao mesmo tempo produtiva e resistente à ameaça. “Temos grupos na Embrapa que já preparam sementes preventivamente, após identificar pragas atacando outros países, pois a ameaça pode chegar ao Brasil”, diz o pesquisador Juliano Pádua, responsável pela coleção de sementes do novo banco. “A ferrugem asiática dizimou as plantações brasileiras de soja e causou prejuízos de US$ 10 bilhões. Para se proteger contra isso, os R$ 13 milhões saem barato”, diz.
O backup de plantas e animais também serve contra o aquecimento global. O último relatório do Painel Internacional do Clima (IPCC) mostra que o clima brasileiro sofrerá grandes alterações nas próximas décadas. Se nada for feito até 2050, podemos perder 12% da produção de milho, 16% do trigo e 60% da soja, segundo a Embrapa. Por isso, a entidade usa a coleção genética para criar cultivos que precisem de menos água. Soja e feijão vêm recebendo genes de café e de leveduras resistentes à seca.
Os repositórios de genes também servem para projetos comerciais. O Brasil usa material da raça de gado ameaçada de extinção curraleiro pé-duro (que produz menos carne, porém mais saborosa) para melhorar a carne do nelore (o mais criado). Melancias mais resistentes ao transporte, girassóis com mais óleo e milhos mais doces são outros exemplos de mudanças que se beneficiam da coleção.
O novo banco brasileiro soma-se a cerca de 1.700 outros espalhados pelo mundo. Onze são estruturas internacionais especializadas. O último estágio dessa rede de segurança é o chamado “banco genético do apocalipse”, o maior do mundo, na Noruega. Inaugurado em 2008, tem a função de guardar uma cópia de segurança de cada espécie do planeta. A iniciativa se justifica. Não é incomum perder coleções genéticas guardadas em bancos nacionais. “O das Filipinas foi destruído por um tufão, o do Iraque e o do Afeganistão foram atingidos em guerras, o do Egito foi devastado durante protestos contra o governo”, diz o norueguês Ola Westengen, coordenador de operações de Svalbard. Ele saúda um esforço heroico dos cientistas sírios, que têm enviado à Noruega amostras do banco genético localizado em Alepo, uma das cidades mais afetadas pelo conflito no país. A rede de bancos genéticos, no entanto, é apenas a esperança final do sistema de segurança, quando tudo mais dá errado. Antes disso, é preciso conservar em campo a biodiversidade e criar mecanismos de preservação. “Precisamos de mais formas de conservação. Eu nunca colocaria todas as minhas fichas numa única estratégia”, diz Harvey Blackburn, que trabalha no maior banco genético nacional no mundo – o dos Estados Unidos.
Fonte: Revista Epoca
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