Não é de agora. A tradição de Morretes na produção de cachaça atravessa os séculos e já atraiu até a realeza. Documentos comprovam que, em 1733, um dos primeiros colonizadores da cidade, João Almeida, já mantinha um alambique às margens do Rio Nhundiaquara. Os registros também apontam que Dom Pedro II, em sua passagem pela cidade litorânea, visitou um ponto de produção – e, provavelmente, deve ter degustado. Não é à toa que morretiana virou verbete de dicionário, como sinônimo de cachaça.
Agora, a importância do destilado para a cidade do litoral paranaense está referendada no Anuário da Cachaça, lançado em junho pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Morretes aparece como um dos munícipios mais importantes na produção do destilado, principalmente quando se leva em conta a proporção de alambiques por habitantes (a chamada “densidade cachaceira”). Conforme o levantamento, o município tem uma média de um produtor regularizado a cada 4 mil habitantes – o que o coloca em oitavo lugar neste ranking.
O que faz com que os produtores de Morretes se destaquem é o foco na qualidade. Quando, em 2004, instalou seu alambique na cidade, o empresário Fugêncio Torres mirava dois objetivos principais: fazer o resgate histórico e cultural do destilado e, a partir disso, chegar a um produto de excelência que ganhasse o mercado internacional. E conseguiu. Apostando em qualidade, 70% da produção da Cachaçaria Porto Morretes vão parar no copo de consumidores de outros países, principalmente nos Estados Unidos.
“A cachaça é o principal destilado brasileiro, tem uma presença cultural marcante e é totalmente identificada com o Brasil. Então, desde o primeiro momento, pensei em produzir uma excelente cachaça que pudesse ser apreciada em qualquer lugar do mundo, representando o país”, diz o produtor.
Em 2016, a Porto Morretes Premium – produzida pelo alambique de Torres – foi eleita a melhor cachaça do Brasil. De quebra, outro rótulo da empresa ficou em sétimo lugar. Na esteira da qualidade, o alambique dá emprego direto a 20 pessoas e, agora, Torres planeja expandir o negócio, a partir da parceria com produtores de cachaça de outras regiões.
“A intenção é incorporar parceiros do interior, que ajudem a gente a ampliar a produção e a participação no mercado internacional, produzindo cachaça de acordo com os nossos protocolos de qualidade”, apontou.
Indicação geográfica
A consolidação não só do alambique de Torres, mas de outros produtores de Morretes, aconteceu após a cachaça ter sido considerada pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do Paraná (Sebrae-PR) como um produto de Indicação Geográfica. Na prática, esses produtos são catalogados quando carregam consigo valor histórico e cultural para o município, como se fossem um símbolo de reconhecimento local. Nesta perspectiva, devem ser protegidos e incentivados por meio de políticas continuadas.
No caso da cachaça de Morretes, este processo começou a ser desenvolvido em 2013 e contou com parceria do SENAR-PR, que ofereceu cursos e desenvolveu programas de boas práticas agrícolas. Isso porque, para a produção de cachaça, a cana-de-açúcar precisa estar plantada próximo aos alambiques.
Além disso, o Sebrae-PR mapeou os pontos de produção e realizou um trabalho intenso, orientando os produtores a se regularizarem e a investir em qualidade. Quem aderiu à iniciativa, profissionalizou a produção, se adequando a parâmetros técnicos e a normas sanitárias. Com isso, pôde produzir uma cachaça de melhor qualidade e, por conseguinte, conseguiu agregar valor ao produto, passando a ganhar mais.
“Antes, havia uma depreciação em relação ao produto. Hoje, temos trabalhado com um produto premium, de qualidade, para ser degustado, como um vinho fino ou cerveja artesanal”, ressalta a consultora do Sebrae-PR Maria Isabel Guimarães. “O Sebrae-PR levantou os dados e preparou as empresas de acordo com os regulamentos e especificações do setor. Aí, começamos a trabalhar as boas práticas agrícolas, aplicadas pelo SENAR-PR, que também esteve conosco no caso de outros produtos, como a bala de banana e da farinha de mandioca”, completa.
Tudo isso, impulsionou a produção regularizada no Estado. Se por um lado a produção paranaense ainda está distante de polos cachaceiros nacionais, como Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo, o Paraná tem avançado dose a dose. Hoje, são 26 alambiques paranaenses regularizados (oitavo lugar no ranking), com 133 rótulos registrados (sétimo colocado).
Atividade ainda esbarra em desafios
Apesar disso, o setor ainda luta para superar alguns obstáculos. O produtor Sadi Poletto, por exemplo, é um dos que apostou forte em qualidade. A cachaça produzida por ele já ganhou um prêmio internacional em Bruxelas, na Bélgica. Apesar de todo o investimento que fez, ele reclama da falta de apoio dos poderes públicos estadual e municipal, no sentido de garantir infraestrutura mínima para o setor. O alambique dele fica a dois quilômetros do centro de Morretes, mas a precariedade das vias até a propriedade tem dificultado com que Poletto mantenha as visitas guiadas ao ponto de produção.
“O Litoral do Paraná está abandonado. Eu faço o trabalho certinho da porteira para dentro, mas o Estado não faz sua parte da porteira para fora. Nós precisamos desse investimento em estrutura para que, pelo menos, possamos ter estradas, ter acesso”, diz.
Outro alvo de reclamação constante do setor é alta tributação do produto aqui no Paraná e o excesso de regulamentação. “Parece que todo o ambiente é feito para desestimular quem começa a empreender. Temos um número excessivo de regulamentos, muitos deles sem lógica. A tributação é absurda. Somos taxados duas vezes mais que os produtores de Minas Gerais, por exemplo”, aponta Torres.
Além disso, a produção cachaceira de Morretes só não é mais robusta por causa de um fenômeno específico: a informalidade. Dos cerca de 90 alambiques mapeados pelo Sebrae-PR em 2013, apenas seis estão regularizados. O próximo passo agora é estimular esses produtores a saírem da clandestinidade, principalmente apontando os benefícios econômicos puxados pela formalização. “A maioria dos produtores resiste a formalização. Afirmam que a fiscalização não é tão grande e os próprios empresários de bar aceitam comprar produtos não registrados. Mas com a formalização e com a indicação geográfica, o alambique, além de todo o respeito e referência, consegue um valor diferenciado pelo produto. Uma garrafa vale de R$ 80 a R$ 120. É um valor grande que se agrega”, aponta Maria Isabel, do Sebrae-PR.
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