Em 2022, o produtor rural Fábio Garbugio, de Campina da Lagoa, na região Centro-Oeste do Paraná, teve uma surpresa um tanto indigesta. Pela primeira vez, ele recebeu uma notificação por conta do Imposto Territorial Rural (ITR), referente à declaração de 2018. Na ocasião, o produtor pagou a diferença para evitar dissabores futuros, mesmo convicto de que o valor cobrado pela prefeitura não estava correto. “Eu paguei, na época, cerca de R$ 14 mil e retifiquei a declaração, conforme solicitado pela prefeitura”, relata.
Com isso, Garbugio imaginou que a questão estava encerrada. Ledo engano. Outra notificação bateu à sua porta por declarações referentes aos anos de 2019 e 2020. “A partir dali decidi contratar um profissional para elaborar um laudo de avaliação do Valor da Terra Nua [VTN] da minha propriedade, de acordo com as normas técnicas e conforme exigência da prefeitura”, relata.
O laudo revelou que, nos últimos cinco anos, o produtor vinha pagando valores maiores de ITR do que deveria. Mesmo com a apresentação do argumento técnico, a Prefeitura de Campina da Lagoa encaminhou os débitos à Receita Federal, alegando que os documentos teriam indícios de subavaliação.
“Fiz minha obrigação como contribuinte, seguindo os critérios da legislação quanto à declaração do ITR e do cálculo do VTN. Mesmo assim, estou com dívidas na Receita Federal, sem Certidão Negativa de Débitos [CND], sem poder financiar minha lavoura e sem poder contratar seguro rural”, lamenta Garbugio, cujo pai, que possui propriedade no mesmo município, também passou por situação idêntica.
Mesmo fazendo o laudo técnico da área, a resposta [da prefeitura] foi ‘indícios de subavaliação’. Mas eles não mostram onde estava o erro no laudo. Simplesmente ignoram, não analisaram tecnicamente.
Fábio Garbugio, produtor rural de Campina da Lagoa
Esses não são casos isolados no Paraná. Nos últimos anos, o Sistema FAEP/SENAR-PR tem recebido uma enxurrada de reclamações de produtores rurais de todas as regiões do Estado, que passaram por situação semelhante à de Garbugio e o pai. Ou seja, agricultores e pecuaristas paranaenses têm contabilizado notificações e cobranças de ITR consideradas maiores do que o devido.
O descompasso entre esses valores está no cálculo do VTN, que deve ser feito a partir do valor do solo com sua superfície e a respectiva mata, floresta e pastagem nativa ou qualquer outra forma de vegetação natural, considerando apenas a localização e dimensão do imóvel e aptidão agrícola. Além disso, o cálculo deve obrigatoriamente excluir os valores de mercado relativos a construções, instalações e benfeitorias, culturas permanentes e temporárias, pastagens cultivadas e melhoradas e florestas plantadas. Como serve de base para o cálculo do ITR, o VTN precisa estar calibrado para que não ocorram distorções.
Temos visto, em todas as regiões do Paraná, muitas prefeituras sem condição de fazer esse tipo de avaliação. Há anos, nós estamos atentos a essa situação e dando o suporte necessário aos sindicatos rurais e aos produtores, para que paguem o valor justo do ITR.
Ágide Meneguette, presidente do Sistema FAEP/SENAR-PR
Conforme legislação, os valores de VTN devem ser definidos mediante levantamento técnico realizado por profissional legalmente habilitado, vinculado ao Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea) e aos correspondentes Conselhos Regionais de Engenharia e Agronomia (Crea), e contratado pela prefeitura. Esse procedimento garante rigoroso caráter técnico ao levantamento do VTN.
Para auxiliar os milhares de produtores rurais, o Sistema FAEP/SENAR-PR contratou um especialista para desenvolver laudos técnicos para a avaliação do VTN em 13 municípios do Paraná: Guaíra, Itambé, Luiziana, Nova Londrina, Campina da Lagoa, Itaipulândia, São João do Caiuá, Pato Branco, Floresta, Mandaguaçu, Santa Mariana, Jacarezinho e Castro. Essas localidades foram escolhidas por registrarem um grande número de produtores rurais notificados indevidamente.
Os 13 laudos técnicos foram desenvolvidos pelo engenheiro agrônomo Rogério Giovanini, especialista em consultoria fundiária desde 1994, com experiência como gerente de produção na Companhia Melhoramentos do Paraná por 14 anos. Eles foram elaborados de acordo com a Norma 14.653-3, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), que serve justamente para a “Avaliação de Imóveis Rurais”. Essa diretriz prevê a avaliação de diversos critérios, por exemplo, a comparação com dados de mercado, de ofertas e negócios realizados no mesmo município, além da classificação do solo, da cobertura vegetal, do relevo, benfeitorias reprodutivas e não reprodutivas, entre outros fatores. Ainda, cada laudo técnico possui mais de 140 páginas.
Para desenvolver cada um dos 13 laudos técnicos, o especialista levantou, ao menos, 12 preços de imóveis negociados junto aos cartórios de registros de imóveis e tabelionatos em cada município e imóveis ofertados por corretores e imobiliárias. “Depois, foi preciso fazer um saneamento estatístico, eliminando os preços 20% maiores e 20% menores que a média levantada”, explica.
O relatório ainda conta com a avaliação de imagens de satélite e drones e mapas dos tipos de solo. “Desta maneira, obtivemos o valor cheio do hectare na região. Para calcular o VTN, é preciso descontar tudo que tem em cima, como construções, pastos e lavouras, entre outras benfeitorias. A homogeneização dos preços é feita pela nota agronômica, que associa a capacidade de uso das terras com a sua localização, acesso, entre outros fatores”, explica Giovanini. Com a aplicação destes critérios, os laudos contratados pelo Sistema FAEP/SENAR-PR possuem grau de precisão entre 88% e 93%.
Segundo o engenheiro agrônomo, o VTN declarado pelas prefeituras também é embasado em laudos técnicos contratados pelos municípios, porém, em muitos casos, com menos de 10 páginas e muitos, erroneamente, considerando os valores de terras divulgados pelo Departamento de Economia Rural (Deral) da Secretaria de Agricultura e Abastecimento (Seab). “Ocorre que esses laudos não têm demonstrado como chegaram nos valores”, afirma Giovanini.
Divergências
Desde 2019, a Instrução Normativa (IN) 1877/2019, publicada pela Receita Federal, alterou as regras para o cálculo do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR). A IN 1877 modificou a forma de prestação de informações sobre o VTN pelos municípios que aderiram à municipalização do ITR a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB), que serve como base de cálculo para o pagamento do imposto.
Ou seja, as prefeituras, ao aderirem ao convênio do ITR com a Receita Federal, assumem a responsabilidade pela cobrança do imposto. Nesse caso, o município fica com 100% da arrecadação. De acordo com a legislação, as prefeituras que aderem ao convênio precisam informar os valores do VTN ao órgão federal. Atualmente 231 prefeituras paranaenses possuem convênio vigente com a Receita Federal para a cobrança do ITR.
No caso do município de Nova Londrina, na região Noroeste do Estado, o poder municipal utiliza como base para o cálculo do VTN os dados do Deral, divulgado anualmente como “Preços médios de terras agrícolas”. De acordo com a Nota Técnica 028/2023, do próprio órgão estadual, os dados divulgados servem apenas de referência para compra e venda, “(…) não servindo como base de cálculo do ITR (Valor da Terra Nua)”.
Para efeito de comparação, em 2017 a arrecadação de Nova Londrina com o ITR foi de R$ 184.999. Em 2022, esse montante aumentou para R$ 535.890. Em termos nominais, trata-se de um aumento superior a 189%. Descontada a inflação no período (IPCA), ainda foi um aumento real superior a 64%, ou seja, a arrecadação do ITR cresceu muito acima da inflação do período.
O objetivo do ITR não é arrecadatório. Ele é um imposto com função constitucional de evitar o mau uso da terra. A ideia é que quanto mais o produtor rural investe e mais produz no imóvel rural, menos tributo deveria pagar.
Edivânia Picolo, técnica do Departamento Jurídico do Sistema FAEP/SENAR-PR
Em 2023, por exemplo, o valor do VTN em Nova Londrina para terra com boa aptidão agrícola foi de R$ 89.585 BI 1610 por hectare. Já o laudo encomendado pelo Sistema FAEP/ SENAR-PR aponta que, em 2024, esse mesmo hectare teria VTN avaliado em R$ 55.926 (confira abaixo os valores dos 13 laudos, comparado com o declarado pelas prefeituras). Essa distorção, que ocorre há muitos anos, tem causado problemas para os produtores rurais de diversos municípios.
“Temos uma lista com mais de 50 produtores que foram notificados na cidade. Organizamos uma reunião, em setembro do ano passado, com a prefeitura, os produtores e representantes do Departamento Jurídico do Sistema FAEP/ SENAR-PR. Na ocasião, fizemos um acordo verbal, mas a prefeitura não respeitou e continua notificando”, afirma o produtor Silvio Antônio Pires, de Nova Londrina.
Pires, por exemplo, recebeu notificação referente a três anos de declaração de ITR. “Tive que contratar perito e apresentar defesa. O município perdeu no processo em que recorreu, pois ficou provado que ele estava errado”, afirma.
Além de o valor do ITR cobrado ser considerado “astronômico” pelo produtor, o órgão público teria desconsiderado parâmetros importantes da avaliação, como o tipo de solo em que se encontra a propriedade. “Estamos na região de Arenito Caiuá e, mesmo assim, colocam nosso cálculo como terra tipo I [boa aptidão agrícola]. Até o perito que contratamos ficou indignado com a ambição por arrecadação da prefeitura”, ressalta o produtor.
Além de Nova Londrina, os laudos contratados pelo Sistema FAEP/SENAR-PR mostram distorções expressivas nos valores encaminhados pelas prefeituras à RF a título de VTN. Em Castro, nos Campos Gerais, é possível ver diferenças. O VTN declarado pelo município à RF no ano passado foi de R$ 63.421 por hectare (ha), enquanto o laudo do especialista prevê VTN de R$ 38.254/ ha neste ano. No município de Guaíra, no Oeste, o VTN calculado para 2024 seria de R$ 85.963/ha, mas foi encaminhado o valor de R$ 160.043/ha à RF em 2023. Em Mandaguaçu, no Noroeste, o valor calculado pelo especialista atinge R$ 36.470/ha, enquanto a prefeitura chegou ao resultado de R$ 128.843/ha.
Quando as prefeituras contratam os técnicos, esses deveriam usar a Norma 14.653 da ABNT para o cálculo do VTN. Mas os valores encaminhados à Receita Federal mostram que as prefeituras não fazem o que a norma pede.
Rogério Giovanini, especialista em consultoria fundiária
Cenário nacional
O descompasso em relação ao cálculo do VTN pelas prefeituras produz algumas anomalias gritantes, que colocam o Paraná como detentor dos maiores VTNs do país. Em Sorriso, município do Mato Grosso, reconhecido como a Capital Nacional do Agronegócio e o maior produtor individual de soja do mundo, o VTN de área de boa aptidão para lavoura é calculado em R$ 5.443/ha. Em 2023, em Campina da Lagoa, no Centro-Oeste paranaense, o valor era de R$ 138.555/ha.
Naquele mesmo ano em Maracaju, maior produtor de soja do Mato Grosso do Sul, o VTN foi R$ 32.900/ha. Em Itapeva, em São Paulo, e Canoinhas, em Santa Catarina, o VTN é de R$ 52.200/ha e R$ 57.440/ha, respectivamente. Os dois municípios são os principais produtores de grãos dos seus Estados.
Em Londrina, sindicato busca alternativa
Além dos laudos contratados pelo Sistema FAEP/SENAR-PR, alguns sindicatos rurais do Paraná têm procurado auxiliar os produtores rurais em relação ao Valor da Terra Nua. Logo que passou a integrar a diretoria do Sindicato Rural de Londrina, na região Norte do Paraná, o atual presidente da entidade, Edson Dornellas, questionou os valores do ITR cobrados no município. “Eu e vários produtores rurais da região não aceitamos o valor de ITR e começamos a bater de frente com a prefeitura, mas vimos que não adiantava brigar”, conta.
A solução encontrada envolve a contratação de dois especialistas na área, da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), para a elaboração do cálculo do VTN do município. O objetivo é utilizar os laudos em eventuais futuros processos jurídicos entre produtores rurais e prefeituras.
Em linhas gerais, o trabalho cria um fator de redução de 30% sobre o valor apresentado na tabela de “Preços médios de terras agrícolas”, divulgada pelo Deral.
“Essa redução representa tudo que foi gasto na propriedade”, explica Dornellas. “Dessa forma, quando o produtor precisar entrar na Justiça contra a prefeitura, ele poderá usar esse trabalho no processo”, complementa o dirigente.
A previsão é que o material esteja à disposição dos produtores londrinenses no próximo ano.
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