A história se repete por praticamente todas as regiões do Estado. Um bando de javalis [ou “javaporcos”, mistura de animais domésticos com javalis] passa por uma propriedade e provoca uma verdadeira devassa. Nascentes e pequenos cursos d`água são pisoteados, dezenas de hectares de lavouras sofrem danos e filhotes de animais são mortos. Literalmente, um rastro de destruição. Longe de ser um privilégio aos observadores da fauna, topar com uma vara desses animais exóticos é uma verdadeira dor de cabeça. São prejuízos financeiros, ambientais, sanitários e
até mesmo risco à integridade física de seres humanos. Afinal, os javalis possuem grande porte e temperamento bastante agressivo.
Nos últimos três anos, esses estragos fazem parte da rotina do produtor de leite, suínos e grãos em Carambeí, nos Campos Gerais, Roderik Van Der Meer. A aparição desses “viajantes” indesejados tem sido comum na propriedade da família. “Teve um ano que em um talhão de milho de três hectares chegou a dar 20% de prejuízo. Os animais derrubam a planta e o que cai não dá mais para aproveitar”, relembra. “Também tivemos problemas na produção de leite. Eles rasgaram a lona onde guardamos 300 toneladas de silagem para as vacas e perdemos quase metade disso, porque entrou ar e estragou. Isso tudo sem contar o risco sanitário e os danos ambientais que esses animais causam”, acrescenta.
Sadi João Piascki Júnior, médico veterinário e produtor rural na Colônia Witmarsum, no município de Palmeira, nos Campos Gerais, é outro produtor que teve problemas com javalis. “De seis anos para cá, piorou bastante. O mais evidente é o dano financeiro, a destruição que eles causam em lavouras de milho, soja e trigo, além do risco de disseminação de doenças. É uma grande preocupação.
O javali se reproduz rápido, não é fácil de ser controlado, se desloca com facilidade”, avalia. O javali pode percorrer até 70 quilômetros por dia, o que torna muito difícil o mapeamento e controle das populações. Além disso, uma fêmea pode dar à luz a até duas ninhadas por ano, com mais de 10 filhotes por gestação. “Eles andam em bandos grandes. Geralmente as fêmeas ficam juntas com os animais jovens e os machos andam sozinhos, só se juntam à vara quando chega a hora da reprodução”, explica Leandro Lipinski, professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
Por serem onívoros, ou seja, comem plantas, insetos e até pequenos animais, os javalis têm ampla capacidade de adaptação ao meio. “Ter javalis significa um problema sério com a fauna nativa por competição de alimento. Imagine que temos pinhões suficientes para os catetos, que são uma espécie aqui do Paraná. Se entra o javali, não vai ter suficiente para os catetos. O animal nativo tem que ter habitat, disponibilidade de alimento e prolificidade [capacidade de reprodução] e um animal exótico de impacto tão grande quanto o javali mexe em tudo isso”, completa Lipinski.
Distribuição e riscos
Toda essa adaptabilidade interfere diretamente na aparição desses animais pelo Estado. Hoje, há registros da espécie em praticamente todas as regiões do Paraná, principalmente no Norte Pioneiro, Campos Gerais e Sul, conforme o mapa de percepção compilado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) (veja na página 12). Mas eles estão presentes até mesmo em parques de preservação ambiental, como na Serra do Mar.
“Os javalis destroem nascentes, restringem a fauna, comem filhotes de animais e são um problema que merece atenção pelo fato de representarem também risco de transmissão de doenças. Eles têm a mesma origem do porco doméstico, as enfermidades que acometem os animais criados em granjas também podem afetar os javalis ou os porcos asselvajados”, enfatiza a médica veterinária do Sistema FAEP/SENAR-PR Nicolle Wilsek.
João Humberto Teotônio de Castro, fiscal da Agência de Defesa Agropecuária do Paraná (Adapar), explica que é impossível estimar quantos javalis e suas variantes há no território estadual (veja o quadro na página 10). Assim, é difícil fazer um cálculo de qual o tamanho do prejuízo financeiro causado pela espécie exótica. “Os javalis trazem impactos sanitários de doenças de produção e de controle oficial para os suínos, bem como perdas de safras de grãos por depredação. Ainda, conforme o contato, até patógenos de risco desconhecido tanto para aves como para suínos”, explica.
Pesquisa
A pesquisadora em sanidade animal na Embrapa Suínos e Aves, Virgínia Santiago Silva, lembra que essa questão dos javalis está no radar da entidade desde 2012. “O principal ponto de partida é que o javali representa potencial risco sanitário aos rebanhos domésticos, à fauna silvestre nativa e à saúde pública, além dos impactos ambientais e econômicos. Nós atuamos em colaboração e parceria com diversas entidades nos processos para o monitoramento e vigilância sanitária a partir do abate dos javalis, que foram declarados como espécie nociva no território nacional e cujo abate para controle populacional foi normatizado, conforme IN 3 de 31 de janeiro de 2013 do Ibama. Como são populações de vida livre, se esses animais se infectam, tornam-se difíceis o controle e a erradicação, e aumentam as chances de disseminação de doenças”, comenta.
Virgínia conta que há uma série de medidas no Brasil em andamento para enfrentar esse problema, reunidas no Plano Nacional de Prevenção, Controle e Monitoramento do Javali (Sus scrofa) no Brasil, o Plano Javali conforme a Portaria Interministerial 232, do Mapa e MMA, de 28 de junho de 2017, do qual diversas entidades nacionais participaram da elaboração.
A especialista diz que desde o começo de abril houve no país um complemento da regulação do controle de javalis, pela publicação da Instrução Normativa 12, de 25 de março de 2019, que, entre outras questões implementa o Sistema Integrado de Manejo de Fauna (Simaf), sistema eletrônico que informatiza os processos relativos ao manejo do javali que até então eram feitos em formulários de papel, dificultando o preenchimento, entrega e retorno das informações do manejo por parte dos controladores. A partir da implantação do Simaf pelo Ibama, o recebimento de declarações e relatórios de manejo da espécie exótica invasora javali será feito online, facilitando o retorno e a gestão das informações. Com o Simaf, que foi desenvolvido pela Embrapa em colaboração com Ibama, estatísticas como, por exemplo, onde e quando estão sendo avistados e abatidos javalis no país, serão acessíveis com maior agilidade, facilitando a gestão do manejo.
Controle de animais exige regras rigorosas
O abate, feito de forma rigorosa e seguindo os procedimentos previstos pelos órgãos competentes, é a maneira mais eficiente de combater esse problema e diminuir os prejuízos na agropecuária paranaense. Mas é um dever de toda a sociedade se unir para reduzir os danos causados pelos javalis, como explica João Humberto Teotônio de Castro, fiscal da Agência de Defesa Agropecuária do Paraná (Adapar).
“O controle da espécie invasora cabe à sociedade civil organizada, mas deve dispor de ferramentas de controles autorizadas pelas entidades competentes, por exemplo: controladores de javalis devidamente legalizados e, eventualmente, controles feitos pelos próprios órgãos envolvidos, como no caso do controle feito pela administração de parques federais e estaduais. Este último caso é bem mais raro e pontual”, enfatiza.
O controle da população do animal, que está abarcada nesse plano nacional, é feito pelos chamados controladores da espécie, que fazem o abate de javalis e porcos asselvajados seguindo procedimentos rigorosos. Para se enquadrar nessa categoria é preciso fazer uma inscrição no Cadastro Técnico Federal e emitir um certificado de regularidade. Depois, é necessária uma autorização de manejo no Sistema de Monitoramento de Fauna (Simaf). Caso sejam usadas armas de fogo, é necessário ter registro no Exército. Cumpridos esses trâmites, o último passo é entregar os relatórios das ações de manejo de controle de javalis na plataforma do Simaf a cada seis meses. O passo a passo completo pode ser acessado no site: www.ibama.gov.br/javali#passo-a-passo.
Javalis são transmissores da Febre Maculosa
Pesquisa realizada pela doutoranda Louise Bach Kmetiuk, do Programa de Pós-Graduação em Biologia Celular e Molecular da Universidade Federal do Paraná (UFPR), aponta que todos os 20 javalis dos quais foram coletadas amostras, no Parque Estadual de Vila Velha, em Ponta Grossa, nos Campos Gerais, foram diagnosticados como positivos para pelo menos um antígeno de bactérias responsáveis pela Febre Maculosa Brasileira. O problema se trata de doença fatal a humanos transmitida por carrapatos infectados pela bácteria que causa a moléstia. O estudo e seus respectivos apontamentos foram aceitos para publicação da revista científica internacional PLOS Neglected Tropical Diseases.
“Os resultados são impressionantes e colocam em risco controladores e outras pessoas que adentram as matas onde javalis estão em grande número”, diz o professor Alexander Welker Biondo, coordenador da parceria da UFPR com o Instituto Ambiental do Paraná (IAP) e o Parque Estadual de Vila Velha.
Segundo Juarez Barkoski, gestor do Parque, a situação é grave. “Os javalis têm tido um impacto terrível na fauna e flora de Vila Velha e isso tem se agravado nos últimos anos, com a recente retirada da cobertura vegetal em frente aos arenitos, símbolo da nossa unidade de conservação”. Um dos aspectos mais importantes do estudo é o apontamento de que houve perda de habitat de espécies nativas devido a presença de javalis no Parque. Conforme o texto, houve informes de catetos buscando alimento em plantações de cereais no entorno da área de preservação, na chamada zona de amortecimento. Outro dado é que a presença maciça dos estágios de ninfas e adultos do carrapato Amblyomma brasiliense (responsável por disseminar a febre maculosa) indicou ainda a sobreposição de javalis com o que é chamado de nicho ecológico de catetos (Tayassu spp.), que são hospedeiros naturais dessa espécie de carrapatos, o que indica uma alteração importante na dinâmica do ecossistema local.
Javali estará controlado em cinco anos, prevê Ibama
Os inúmeros problemas gerados pelos javalis no Brasil já têm data para acabar (ou ao menos reduzidos drasticamente), segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama). A entidade, em parceria com os Ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente, elaborou um plano de controle e prevenção da espécie exótica.
“O controle dos animais era muito burocrático. Lançamos recentemente um sistema de controle, que era uma demanda dos manejadores, que irá revolucionar, dando mais agilidade”, ressalta o diretor de Uso Sustentável da Biodiversidade e Florestas do Ibama, João Pessoa Riograndense Moreira Júnior. “O javali é uma das 100 piores espécies exóticas do mundo. E o Brasil é propicio para dispersão do animal, pois não tem predador natural, há gama de alimentos disponível, clima ideal, se reproduz numa facilidade enorme. Se não tivéssemos tomado uma medida, a situação estaria bem pior”, acrescenta.
A autorização para o abate é mais ágil e facilitada, inclusive com secretarias estaduais e municipais a frente do manejo e abate. No caso do abate particular, é preciso estar cadastrado junto ao Ibama e fazer o pedido de autorização no sistema. Além, claro, de ter a autorização do dono da propriedade. “Tudo é bem simples, por meio de sistema”, aponta Moreira Júnior. De abril 2019 deste ano até agora, mais de 2,2 mil autorizações para abate já foram emitidas.
A erradicação da espécie é praticamente impossível. Existe apenas um caso no mundo, em uma ilha dos Estados Unidos. Mas o diretor do Ibama garante que é possível controlar em cinco anos, mas por meio de uma ação conjunta.
“Experiências mundiais mostram a necessidade de controle por meio de um esforço coletivo que irá propiciar que o javali atinja um tamanho de população adequado. O Ibama foi sensível a essa questão do setor e as ferramentas estão à disposição”, destaca Moreira Júnior.
Hoje, o javali está presente em 563 municípios brasileiros, sendo 88 no Paraná (174 em São Paulo, 116 no Rio Grande do Sul, 120 em Minas Gerais e 49 em Santa Catarina). Ainda, de acordo com estimativa do Ibama, 28,8 mil animais foram abatidos em 2018 no país, enquanto outros 15,8 mil em 2017. Para isso, 44 mil controladores estão cadastrados no sistema do Ibama.
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